Tom Hanks esteve aqui
O Expresso Polar quer começar
uma revolução: atores digitais
em tudo iguais aos verdadeiros




O menino e o condutor rumam para o Pólo Norte: nem um rolo de filme foi usado

Ao chegar à idade em que começa a duvidar de Papai Noel, um menino ganha uma última chance de manter-se na inocência: na noite da véspera de Natal, é convidado a entrar num trem que o levará, junto com outras crianças no mesmo dilema, ao Pólo Norte, onde o velhinho e seus elfos preparam os presentes. A história que serve de base a O Expresso Polar (The Polar Express, Estados Unidos, 2004) não tem, como se vê, nada de revolucionário. Adaptada de um livro infantil publicado em 1985 pelo americano Chris Van Allsburg, ela é, primordialmente, uma celebração à moda antiga dos valores natalinos, como altruísmo e generosidade. Já o filme que estréia nesta sexta-feira no país tem, e muito, de inovador. Partindo de tecnologias testadas nos recentíssimos episódios finais de O Senhor dos Anéis e Matrix (e, portanto, ainda nem bem assimiladas pelo grosso da indústria de cinema), O Expresso Polar só tocou o celulóide no momento em que já se encontrava pronto para a copiagem: embora seja estrelado por Tom Hanks (em cinco papéis diferentes, do menino ao condutor do trem) e outros atores de carne e osso, o filme é o primeiro a ser concebido e realizado inteiramente num ambiente virtual.

O único set (se é que se pode chamar assim) construído para O Expresso Polar foi um domo de cerca de 3 metros quadrados de chão. Nas paredes internas dessa estrutura, instalaram-se 72 câmeras. Mas não daquelas em que corre filme, e sim de um tipo que emite luz infravermelha e informa continuamente, a um computador, a posição dos obstáculos que a luz encontra – no caso, as centenas de sensores aplicados no traje de Hanks e também em seu rosto. Ou seja: à medida que Hanks se movia, ia-se criando uma versão digital de sua expressão corporal e fisionômica. Essa "planta" viva e tridimensional é o que serviu de base aos animadores para dar a forma final aos personagens – que eram então inseridos nos cenários, também totalmente virtuais. A versão animada de Tom Hanks é plenamente reconhecível, do sorriso à postura e ao arquear de sobrancelhas, mas ela chegou a O Expresso Polar sem que o diretor Robert Zemeckis tenha rodado um pé de filme sequer.



Qual a vantagem da utilização maciça dessa técnica, batizada de "captura de desempenho", é algo que ainda não está claro – e O Expresso Polar mais acirra a dúvida do que a elucida. O diretor Zemeckis, sempre um entusiasta das novidades tecnológicas (são dele, por exemplo, Uma Cilada para Roger Rabbit e Forrest Gump), alega ter deflagrado uma revolução na indústria cinematográfica e apontado o caminho que leva a uma espécie de Santo Graal: atores digitais indistinguíveis dos verdadeiros. No novo cinema virtual que se desenha, não há questão mais controvertida do que essa. A idéia de que um diretor possa dispensar os atores ou burilar a posteriori sua performance (e, quem sabe, desfigurá-la) apavora a categoria. Mas não só ela. Mesmo cineastas conhecidos por seu espírito inovador, como Steven Spielberg, acreditam que o imprevisto, a colaboração e o celulóide são em grande medida os responsáveis por aqueles momentos fortuitos em que o cinema se torna algo maior. Eliminar essas variáveis não seria, assim, um progresso, mas um atalho para um cinema ainda mais despersonalizado.

Não é o caso, claro, de abdicar de uma tecnologia que mal teve tempo de dizer a que veio. Mas o que Zemeckis fez foi provar que essa é uma técnica viável em larga escala – e não aprimorá-la artisticamente. O Gollum de O Senhor dos Anéis, criado com uma versão mais artesanal da captura de desempenho, ainda deixa muito para trás os personagens de O Expresso Polar, cujo olhar por vezes esgazeado (ninguém descobriu como colocar sensores na retina dos atores) dá a eles o aspecto incômodo de manequins. É uma falha pequena diante do lirismo e do escopo técnico de O Expresso Polar, mas decisiva. Não só porque é a barreira que separa esse cinema do fotorrealismo que ele almeja, mas porque ajuda a esclarecer de uma vez por todas uma distorção de que o pessoal da computação gráfica há muito se queixa, e com justiça: o fato de que eles costumam ser vistos como pilotos de mouse, e não como os artistas talentosos que são – além de atores versáteis, que tiram de seu repertório pessoal a riqueza de seus personagens. Para maiores esclarecimentos, basta consultar Buzz Lightyear, Nemo, Shrek ou, em breve, os Incríveis.