SABATINA FOLHA

Autran não perdoa ninguém e agrada a todos

Ator com 60 anos de carreira nos palcos dispara contra diretores, o governo Lula, a Rede Globo, críticos teatrais e jornalistas

Paulo Autran não perdoou ninguém e agradou a todos. Este é o saldo da 9ª Sabatina Folha, que ocorreu no último dia 28/11/05, no Teatro Folha, em São Paulo, e tinha o melhor ator brasileiro vivo de sua geração em atividade como centro das atenções. Aos 83 anos e 60 anos de carreira, o carioca formado em direito falou elegantemente mal de tudo e de todos e, ao final, uma hora e 49 minutos depois, foi ovacionado de pé, aos gritos de "Bravo!".Além de José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho e Gerald Thomas, a santíssima trindade de diretores teatrais brasileiros, sobrou para Lula, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, o jornalista Paulo Francis (1933-1997) e a crítica teatral. Leia a seguir os principais momentos da conversa, em que Autran respondeu a perguntas da platéia e da mesa, composta por Lígia Cortez, atriz e diretora de escola de teatro, o diretor e dramaturgo Aimar Labaki, o crítico da Folha Sergio Salvia Coelho e Nelson de Sá, titular da coluna "Toda Mídia", da Folha.

CRÍTICA - O crítico, hoje em dia, é capaz de julgar um espetáculo, mas não sabe o que é uma inflexão absolutamente original, que leve a platéia a uma gargalhada ou a um auge de emoção, dado por um tom. Tenho impressão de que eles não têm mais ouvidos para isso. Às vezes, leio elogios a interpretações monocórdicas, unilaterais. Os críticos não percebem a riqueza que a interpretação de um papel pode ter. Vocês me desculpem falar isso na frente de vocês. A crítica não se interessa, não se importa mais por certas coisas do teatro que continuam sendo essenciais para um espetáculo.

CRISE POLÍTICA - Atualmente, chama-se democracia no Brasil uma coisa tão terrível, não é? Tão vergonhosa para a gente, tão terrível. A gente vê os políticos brasileiros envolvidos em escândalos do tamanho que nenhum brasileiro jamais pensou que pudesse atingir. A democracia brasileira, no momento, está muito por baixo. Vamos ver se a próxima eleição resolve alguma coisa, porque a última foi uma decepção total (aplausos).

GILBERTO GIL - O Gil está ganhando muito dinheiro, tem cantado no mundo inteiro, tem encantado multidões, mas, no Brasil, não consegui saber o que ele fez, não. Acho que ninguém da classe teatral sabe o que ele fez. (aplausos). [Sobre o governo Lula] Vocês já viram o que penso e acho, é o que a maioria de vocês pensa e acha também.

PUBLICIDADE NA TV - Não faço porque não me convidam, pagam muito bem, é ótimo. Vejo esses anúncios aí dos bambambãs da TV atualmente, digo: "Puxa, ganhou dinheiro, ficou rico com esse comercialzinho". Fernanda Montenegro ganha uma fábula com cada comercial que faz. Não sei, não querem velho fazendo anúncio, não têm me convidado. Quando convidam, peço uma importância tal, não pagam.

PAULO FRANCIS - O Paulo Francis era muito amigo da Tonia Carrero, do marido dela, o Adolfo Celi (1922-1986), de mim. De repente, nas críticas, começou a escrever: "Tonia Carrero, muito sexy". Noutra: "Tonia Carrero continua sexy". Os críticos elogiavam, ela ganhou prêmios. Para Francis, ela era uma atriz sexy. Certa vez, ela foi entrevistada na TV e lhe perguntaram sua opinião sobre o crítico Paulo Francis. E ela: "É o crítico mais sexy do Brasil". Os atores são vaidosos, mas os críticos são mais. O Francis ficou tão irritado que escreveu um artigo contra a Tonia, intitulado: "Tonia Carrero sem peruca". Dizia barbaridades. Inclusive: "Não dormi com Tonia porque não durmo com mulheres da idade de minha mãe". O Celi mandou avisar que ia quebrar a cara do Francis. Eu fui com ele a um teatro onde o Francis ensaiava uma peça. De repente, o Celi chega com a mão sangrando. "O que foi isso?", perguntei. "Eu arranquei os óculos do Francis e quebrei, cortei a mão." Então, mandei recado a ele que, quando o encontrasse, iria cuspir na cara dele. Um belo dia, eu fazia uma peça em que entrava só na cena final. Vi o Francis na platéia, ao lado do [ator] Ítalo Rossi. Esperei, fiz a minha cena e, quando o público saía, cheguei junto do Francis, chamei e, quando virou, dei-lhe uma cusparada. Ele estava de óculos, e o cuspe escorria. Cuspi com prazer.

PRÓXIMOS PLANOS - A minha próxima peça, que vou começar a ensaiar em julho, é "O Avarento", de Molière, um texto divertido, com aquela crítica deslumbrante que faz às pessoas comuns e aos burgueses, como se diz hoje. Além de continuar fazendo o programa de rádio, escrevi um livro, atuei num filme... Ando saracoteando um pouco demais para a minha idade.

A DIREÇÃO TEATRAL
Autran solta o verbo sobre encenadores contemporâneos.

ANTUNES FILHO - Eu tinha visto uma montagem do Antunes ["A Megera Domada", 1965] em que uma das grandes inovações dele foi colocar uma garrafa de Coca-Cola em cena. Imaginem, um Shakespeare com Coca-Cola. E a imprensa de São Paulo dizia "que ousadia maravilhosa", "que concepção nova" [risos]. GERALD THOMAS - Ontem [domingo], no restaurante, o Gerald me convidou pela enésima vez para trabalhar com ele. Na festa dos meus 80 anos, ele já havia me convidado para fazer "Édipo Rei" [tragédia de Sófocles]. Eu disse: "Não dá, eu já fiz" [em 1967]. Ele respondeu: "Eu sei, não tem importância". Aí eu disse: "A Henriqueta Brieba já morreu, qual a atriz que será a minha mãe?" [risos].

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA - Foi a grande revelação de direção teatral no Brasil. Quando ele começou, era um diretor extraordinário, com espetáculos deslumbrantes. "Pequenos Burgueses" [de Górki, 1963] foi um dos melhores espetáculos que já vi na minha vida, no mundo inteiro. "Roda Viva" [de Chico Buarque, 1968] foi memorável. Depois, teve uma fase muito ruim. E agora ele faz um teatro muito específico. Sei que tem muita gente que vai, fica encantada, mas, para mim, não interessa muito. Entrar no teatro para ver dois rapazes se masturbando, não me interessa absolutamente. Mas muita gente gosta. Masturbação parece que atrai público.

ANTÔNIO ARAÚJO - Ele vai estrear um espetáculo dentro de um barco no Tietê. Não sei como vai ser isso, mas deve ser fascinante. Antônio Araújo é um grande diretor [do Teatro da Vertigem], tem uma noção pessoal do teatro, mas tudo que faz é bem feito, é bonito, é inteligente. Quem tiver coragem de navegar no Tietê deve ver esse espetáculo.

DENISE STOKLOS - Ela é um gênio, uma criadora extraordinária, uma artista na maior acepção do termo. Só não é escritora. Li uma entrevista dela, ontem [domingo], mas não entendi uma palavra do que escreveu. No palco, é um fenômeno, uma coisa eletrizante, inteligente, um ser humano extraordinário. Pouquíssimas atrizes, no Brasil, chegaram ao nível de criação da Denise.

MÁRIO BORTOLOTTO - Conheço pelo nome, mas nunca vi uma peça dele.

GRUPOS - Trabalhar vários anos com as mesmas pessoas ajuda a desenvolver com mais facilidade o seu talento. Em geral, os grupos se formam ou em torno de uma pessoa ou de uma idéia. No caso do TBC, foi em torno de uma idéia, que era fazer o melhor teatro que pudesse haver no Brasil. E, naquela altura, realmente se conseguiu isso. Entre os atuais grupos, a [cia. do] Latão é ótima. O Marco Antonio Rodrigues tem um grupo [Folias d'Arte] que se formou em torno da personalidade dele, que é um bom diretor. Torço para que o Latão, o Teatro da Vertigem e o Folias continuem por muitos e muitos anos porque são úteis para o teatro brasileiro.

O OFÍCIO TEATRAL
A seguir, Paulo Autran pondera sobre o ofício que escolheu.

TALENTO - Talento é a característica de um artista. Se o artista não tem talento, nunca vai ser um bom artista. Por outro lado, é impossível dizer a alguém que você não tem talento. Acabei de ver isso. Fiz uma entrevista no "Dois a Um", a Mônica Waldvogel entrevistou a mim e ao Paulo Vilhena, que era um galãzinho da Globo, que não conseguia responder a uma pergunta, não entendia nada de nada. Foi uma entrevista lamentável. Sinceramente, pensei: "Este jamais vai ser um ator".A partir dessa entrevista, esse rapaz começou a estudar. Ensaiou um peça, era o mais disciplinado, decorou o texto antes dos colegas, fez todos os exercícios, estreou e tem sido elogiado por todo mundo. Fui ver o espetáculo ["Essa Nossa Juventude", dirigido por Laís Bodanzky] e fiquei fascinado. Ele, que é um rapaz bonito, nem está bonito no palco; está exercendo a sua capacidade de ator. Eu me enganei completamente e fiquei felicíssimo com ele. EXPERIMENTAÇÕES - Até entendo que alguém faça um teatro como o que [o diretor polonês Jerzy] Grotowski [1934-1999, criador do "teatro pobre"] fez, que era um teatro de exploração de todas as possibilidades físicas do ator, da voz, do gesto, porém, ele fazia espetáculo para 45 pessoas. Teatro é uma idéia transmitida por um ator ao público. São três elementos: público, ator e idéia. Se você suprime um, deixa de ser teatro. Se você suprime o público, então o teatro o que é? Uma masturbação para os atores gozarem, só? Para mim não é.

ESCOLAS DE TEATRO - Atualmente, existem várias escolas, a maioria é arapuca. Pessoas que prometem que vão conseguir emprego na Globo, no SBT. É tudo forjado, é mentira. Nenhum dono de escola tem esse poder. Na Globo, só trabalha quem for amigo de alguém, quem for muito bonitinho ou muito bonitinha consegue emprego lá. Mas não é com diploma de escolinha vagabunda que eles vão conseguir.

TELEVISÃO - Fiz três novelas, deixei espaço de quatro anos entre uma e outra. E, quando me perguntavam por que não queria fazer novela, eu dizia: "Para eu não enjoar de fazer televisão, e para o telespectador não enjoar de ver minha cara todo santo dia dentro de casa". Na terceira, enjoei. É muito chato.

APLAUSOS E VAIAS - Tem umas peças em que o aplauso é diferente. Tive dois tipos na minha carreira: um, totalmente diferente do outro, foi o do "Édipo Rei". Na última sílaba da peça, a platéia aplaudia em uníssono. Outro foi em "Rei Lear", que a maioria dos críticos não gostou, Bárbara Heliodora odiou. Foi a peça em que fui ovacionado em todas as sessões. É claro que os críticos vêem esse ou aquele defeito, mas o público passa por cima disso e recebe o impacto daquele texto extraordinário do Shakespeare. Normalmente, felizmente, tenho sido bastante aplaudido. Nunca recebi uma vaia na minha vida. Não sei o que é ser vaiado. Aliás, me ufano muito disso.