Perfil no Barril...

Este é o Zenbollah

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Meio zen, meio homem-bomba', o nobre deputado triunfou na CPI. Levou de prêmio o apelido

É difícil vestir a carapuça de deputado na carcaça de Fernando Gabeira. É como se ela tivesse sido apropriada, para todo o sempre, por aquela sunguinha que ele usou na praia. Numa conversa, chega a ser constrangedor tratá-lo como tal, visto que a recíproca é sempre de uma desconcertante informalidade. 'Deputado, o que o senhor acha de determinado assunto?' 'Pô, cara, o que tá rolando é o seguinte...'. Não dá. Melhor é chamar o Gabeira de Gabeira, deixando pra lá qualquer compromisso com a liturgia do cargo que ocupa. Deve ter sido assim que o senador Jefferson Perez, de 74 anos, reagiu a um telefonema dele tentando convencê-lo a convocar a primeira sessão da CPI dos Sanguessugas, em junho deste ano: 'Você é o mais velho', disse Gabeira. 'Segura a onda.' Até outro dia, Fernando Gabeira era visto por muita gente apenas como um animal exótico na fauna do Congresso. O cara da sunga. O guerrilheiro do MR-8 que fundou um Partido Verde, chamou o povo para abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas, e por fim desejou ingressar no País com umas sementes de maconha. 'Eu me dedicava a temas muito minoritários e polêmicos', analisa Gabeira. 'Isso me deixava no escaninho do deputado temático ou do deputado excêntrico.' Embora pudesse 'passar a vida desse jeito na maior tranqüilidade', dois lances o transformaram em um nobre deputado. O primeiro aconteceu quando Gabeira pegou o microfone da Câmara e vociferou o que todo o mundo gostaria contra o então presidente da casa, Severino Cavalcanti, que defendera a pizza para os mensaleiros: 'Vossa Excelência está em contradição com o Brasil. A sua presidência é um desastre para o País'. Ao que o bizarro Severino respondeu, disparando pela culatra: 'Vossa Excelência, recolha-se à sua insignificância'.

Depois do desaparecimento político de Severino, Gabeira engajou-se com tal bravura na luta pela instalação da CPMI dos Sanguessugas, que chegou a evocar as vias de fato - um coquetel molotov no Congresso nacional. (Essa semana o artefato voltou à baila, quando o peludo senador Wellington Salgado, sósia de Gerald Thomas, descabelou-se, insurgiu-se contra a Comissão e acusou Gabeira de copiar a tática do Primeiro Comando da Capital. Foi obrigado a ouvir do deputado uma insólita lição sobre a história do coquetel molotov, que 'o idiota achou ter sido inventado pelo PCC'.) Enfim nada se explodiu (apenas o senador se implodiu, sendo o único a votar contra o relatório da CPI, divulgado na quinta-feira passada). Aos colegas que inicialmente se contrapunham à criação da Comissão de Inquérito, preocupados com a falta de tempo em um ano de Copa do Mundo e eleições, Gabeira dizia o seguinte: 'Olha, se não tivesse esse papo de ´deputado pra cá, deputado pra lá´, esse negócio de ´questão de ordem´ e não sei o quê, estava tudo resolvido em 72 horas. Um repórter faria o serviço em dois dias', provocava. 'Vocês vão ter quatro semanas!'. A CPI emplacou, e agora, aos 65 anos, Gabeira é o cara.

O nobre deputado tem uma peculiar relação com o Congresso. Considera 'Niemeyer um arquiteto de renome internacional, mas...' detesta trabalhar naquele espaço. 'Aqui não dá para saber se é dia ou se é noite', queixa-se. 'Você é colocado em um clima de abrigo atômico.' Lotado no gabinete 332 do Anexo IV, sua pequena sala de trabalho é uma entre dezenas de outras destinadas aos deputados. A juíza Denise Frossard é sua vizinha de porta, enquanto o doutor Enéas esconde-se no fundo do longo corredor.

São cerca de 200 metros de deputado, cada qual improvisando na decoração de seu cafofo, de onde ecoam como mantra os discursos intermináveis da Rádio Câmara. Gabeira logo na entrada as cores do arco-íris e a inscrição 'Pace', do grupo inglês de apoio aos homossexuais. Um cartaz na porta de Ricardo Berzoini saúda 'a volta por cima do PT'. Alberto Goldman substituiu o logo 'Brasil - País de todos' por um decalque do 'Brasil - paraíso dos banqueiros'. E por aí vai, num balaio de gato ao estilo Carandiru.

Gabeira relaciona-se 'de forma amigável com ascensoristas, pessoas da limpeza, gente que serve o café'. Relaciona-se também com os deputados, 'quase todos'. Para tanto, é de grande serventia o seu passado na luta armada contra a ditadura. 'Eu tenho experiência de cadeia, né? Estive preso em doze cadeias... É um lugar em que as pessoas são forçadas a uma convivência que não escolheram. O Congresso para mim é a mesma coisa', compara. 'Estou aqui neste lugar, mas não escolhi meus companheiros.'

Em Brasília, a vida de Gabeira resume-se ao vai-e-vem de casa para o trabalho. Ele faz isso num motocão Suzuki de 650 cilindradas. Recentemente 'um cara aí andou me dando uma fechada'. O deputado não chegou a cair, tendo ficado 'apenas com o pé problemático durante um tempo'. Uma consulta aos bens declarados por Gabeira à Justiça Eleitoral revela que ele possui uma aplicação no Banco do Brasil, duas motocicletas Suzuki (!) e mais nada. Um dia, arrebatado pelo sonho da casa própria, acorreu a uma agência da Caixa Econômica disposto a conseguir um financiamento e 'virar uma pessoa séria finalmente'. Quando o funcionário listou a série de documentos que teria de providenciar, 'disse never e até logo'. O deputado parece ter conseguido conciliar inquilinato e pessoa séria, visto que dispensa o seu apartamento funcional. Não vai nisso nenhuma questão ética, mas um problema de ordem funerária. 'Aquilo é muito grande, é praticamente um mausoléu', define. 'Eu só vou usá-lo, talvez, quando eu morrer.' A relação de Gabeira com Brasília definitivamente não é das melhores. 'Minha vida aqui é o que chamo de prisão-albergue', diz. 'Do ponto de vista pessoal, é preciso tomar cuidado porque há muitos interesses. Vida noturna, social, não tenho nenhuma. Eu uso a cidade apenas o suficiente para sobreviver.' Às vezes Gabeira sai para jantar. Invariavelmente aparece alguém para tirar uma foto com ele. As pessoas vêm, abraçam o Gabeira. 'Se você for examinar bem essas fotografias aí, eu vou pegar uns 300 anos de cadeia.' (Gabeira tem obsessão pelo tema da cadeia.)

Como o Congresso parece um abrigo nuclear e a cidade, uma prisão-albergue, Gabeira trata de fugir para o Rio de Janeiro nos finais de semana. Lá ele aluga um apartamento em Ipanema, onde vive com uma de suas duas filhas - isso quando ela está no Brasil (é surfista de ondas grandes, vive entre a Indonésia e o Havaí) e quando o próprio Gabeira não está na casa da sua mulher, Neila, companheira há 8 anos. No Rio ele não é deputado - é 'um cara de sandália no meio da rua'. 'É uma cidade muito bonita', diz. 'Infelizmente a história está mostrando que ela é mais bonita do que mereciam os cariocas.' Gabeira é um sujeito em litígio com as cidades e seus homens. Diz que todos os mitos caíram por terra e a isso dá graças a Deus. 'Existem diferenças enormes entre os ideais e a realidade. Existe uma expectativa muito romântica em relação aos seres humanos. Mas você chega à conclusão de que são limitados. A velhice, a aproximação da morte, é um ajustar de contas com esse fim dos mitos. Eu sou, por exemplo, totalmente vacinado contra movimentos que se destinam a criar um novo homem. Quando escuto sobre isso, penso logo em mortes e fuzilamentos.' Fernando Paulo Nagle Gabeira, nascido em Juiz de Fora, é descendente, por parte de pai e mãe, de libaneses que migraram para o Brasil. Diz que 'muito já se discutiu sobre o tamanho do meu nariz', uma notável herança de sua origem árabe.

Se pudesse, Gabeira mudaria várias de suas características físicas. 'Mas o nariz, esse eu não mudo. Não vou ceder. Que me agüentem com o nariz assim!' O litígio de Gabeira com os homens inclui candidatos e candidata à Presidência da República. Gabeira não sabe em quem vai votar. 'Os temas que me interessam eles nunca tratam deles.

Não falam de globalização, não falam da guerra no Líbano. Ou eu vivo fora do tempo, ou eles vivem. A sensação que tenho é que é uma coisa do interior', reclama. 'São bons candidatos à prefeitura de Juiz de Fora.' Gabeira já foi candidato a presidente. Em 1989, 'sem grana nem para o táxi'. Ficava envergonhado porque tinha de viajar o Brasil todo - mas quando chegava no aeroporto havia 'três pessoas com a bandeirinha levantada'. 'Do ponto de vista de uma disputa real, não tenho temperamento para ser presidente, governador nem senador. Sou deputado e vou continuar um pouco mais. Aqui estou chegando no final. Vou apenas esperar os que virão para orientá-los nos escombros.' Entre o cara de sandália no meio da rua e o coquetel molotov no Congresso nacional, Gabeira ganhou dos companheiros de CPI o melhor dos apelidos: Zenbollah. Este é o cara. (Ah, sim: o Gabeira ainda fuma maconha. Mas não no Brasil - apenas quando viaja para Amsterdã.)